segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Feridas IV

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Ao fundo vimos um carro, descontrolado. Não abrandou. Quando olhei para trás vi-a parada a olhá-lo, como se não se conseguisse mexer. Ainda gritei. O som que se seguiu continua a ser nexplicável. Ás vezes ainda o oiço. A nossa mãe, Helena, foi projectada trinta metros. A Carolina caiu sobre os seus joelhos, e a primeira coisa que fiz foi abraçá-la, com a mesma força e sentimento dos abraços da mãe. O nosso pai, Alberto, correu na direcção de sua mulher, a gritar, a chorar. Em desespero. Soube, logo ali, no preciso momento em que a máquina atingiu aquele corpo humano, indefeso, que tudo ia mudar. Que a morte ia chegar. Sem dó. Sem medo. Chegou naquele dia para nos despedaçar.
O condutor não parou. Seguiu. Escusado será dizer que a polícia nunca o prendeu.
Aquele foi o momento perfeito da morte. O dia em que ela nos trouxe a tragédia.


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domingo, 5 de dezembro de 2010

Feridas III

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Aquando da morte da nossa mãe o que imperava em casa era o silêncio. A minha infância, e a da Carolina, foi feita de pequenos momentos, de idas à praia e de passeios no campo alentejano. Foi feita de almoços em família, de Natais memoráveis. Fomos miúdos com sorrisos estampados no rosto.

Quando a primeira morte aconteceu muita coisa mudou. O nosso pai cavou um buraco de onde só mais tarde, com muito suor, lágrimas e a nossa ajuda, conseguiu sair. As nossas forças estavam no limite dos limites. A fraqueza apoderou-se de uma família que até então parecia feita de betão. Bastou um condutor embriagado para acabar com tudo o que foi construído com Amor e perseverança.
Lembro-me, infelizmente, desse dia. Estava um dia quente em Vila Viçosa. Aquele quente que só no Alentejo se sente. Visitámos o castelo e o palácio. Almoçámos num restaurante típico. À saída parámos à espera que o sinal ficasse verde para os peões. A luz mudou. Atravessámos. Eu, a minha irmã e o nosso pai fizemo-lo a correr, em jeito de brincadeira. Ela, a nossa mãe, ficou para trás. 
E um ruído soou.


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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Feridas II

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Um novo dia nasceu. O sol tentava livrar-se das nuvens. Tentava brilhar. Fui até à janela e vi a Carolina sentada no baloiço, no jardim, a gesticular. Desci. « Carolina, que estás a fazer? ». « A falar com o pai.», respondeu. Juro que o meu coração deixou de bater durante breves segundos. Naquele instante senti a minha irmã cair num poço sem fundo. Naquele instante, olhei-a nos olhos e mais uma vez nada vi. Ela mal pestanejava. Estava hipnotizada num outro baloiço, vazio aos meus olhos, mas onde ela avistava o nosso pai. Para ela, ele estava ali sentado, sereno e pensativo. Era ali que tantas vezes brincámos. Foram ali passadas tantas tardes. Foram tantos os segredos confiados e tantas as histórias partilhadas.

O nosso pai era um homem simples. Não dava nas vistas mas era conhecido de todos. Tinha uma loja de electrodomésticos e ainda fazia uns biscates como serralheiro. O dinheiro custava a chegar ao fim do mês, principalmente depois do que aconteceu à nossa mãe, mas eu e a Carolina sempre ajudámos no que era preciso.
Sempre estivemos uns para os outros. Sempre cuidámos de nós, de todas as coisas, de todos os momentos.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Feridas

Está vento. Um pedaço de cinza cai sobre o teu ombro. Acabámos de lançar aos tempos o nosso pai. Morreu faz hoje três dias. Três longos dias. Dolorosos. Feitos de lágrimas e abraços. Ficámos sem ninguém. Só nós dois nesta enorme casa. Primeiro a mãe, agora o pai. Em ti vejo uma tristeza imensa. Uma tristeza daquelas que nos mata a cada segundo, a cada minuto que passa. Eu sei que  te sentes assim. Conheço-te. Sei que tudo isto te vai afogar. E também sei que não vou ter forças para te salvar.
Abraço-te. Dou-te um beijo na tua face rosa e carregada, e olho os teu olhos cor de mel. Nada vejo. Estás vazia. Quero tanto dar-te calor, o pouco que tenho. Mas nada consegues agarrar. Tenho medo por ti e por mim. Se abalares, se te perder, também, que vou eu fazer? Não sei. Não quero sequer pensar nisso. Tremo.
Estamos, agora, sentados na relva, com o mar como fundo e o céu estrelado como tecto.« Carolina, diz-me o que estás a sentir ». O silêncio continua. Um silêncio pesado, gritante, angustiante. Continuo, « Não consigo chorar. Sinto uma dor tão grande que me prende tudo, as pernas, os braços, as lágrimas. O coração ».

A minha irmã sempre fora fechada, e o seu mundo um castelo de cartas, frágil. Criei-a, praticamente, sozinho, desde a morte da nossa mãe. Ficámos os dois devastados, mas ela entrou numa depressão que durou dois anos. Nada parecia fazê-la acordar daquele estado de letargia. Só quando conheceu o Gustavo, o seu namorado. Mas hoje ele não está com ela, para a abraçar. Hoje sou eu que tomo conta dela, outra vez, mas temo não conseguir. É muita coisa no peito. Muita coisa presa.


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terça-feira, 9 de novembro de 2010

Andava à procura de epicidade...




" ...  como um pano amarrotado que se esquece no estendal ... "

Andava à procura de epicidade nas ruas da minha vida. Procurei-a em cada beco, em cada avenida, em cada bairro. Vi as minhas gentes. Vi crianças a brincar, vi o mundo e o tempo. Andava à procura de epicidade. Procurei-a entre oliveiras e sobreiros. Entre montes e cabeços. Vi gerações velhas, vi as suas faces feitas de histórias. Vi homens e mulheres a lavrar a terra. Vi o gado e os pastores e os cães. Vi, também, carroças puxadas por burros, conduzidas por homens do campo com a roupa suja de pó e a barba por fazer. Andava lá, à procura de epicidade. Tirei fotos. Fiz desenhos no chão seco, enquanto que no céu voavam carracenos e cegonhas.
Eu andava à procura de epicidade. E encontrei-a, em cada sorriso que vi. Em cada pôr-do-dol que presenciei, em cada pássaro que vi rasgar o azul limpo do céu. Encontrei-a nos rios e nos lagos e no oceano. Encontrei-a no olhar.
Andava à procura de epicidade.


" Andava à procura de epicidade... " - 09/11/10

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Noite Cerrada



Noite cerrada e sem luz. Caminho. Não sei onde vou. Comecei a viagem quando ainda era dia. Hoje corria o mundo em passos de bebé. Sozinho, só eu e o meu silêncio e uma música a tocar baixinho. Hoje apetece-me andar até desmaiar de cansaço. Apetece-me dar corda aos sapatos e correr o mundo. A observar. A lançar o meu olhar às pessoas que passam, aos meninos que brincam, às árvores, ao céu e ao sol e às nuvens. Até mesmo à chuva. Isso não importa. O tempo. O tempo não importa. Só o mundo.

" Noite Cerrada " - 04/11/10

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ainda Ardem


Ainda arde, o cigarro. A noite está fria e o vento gélido. Ambos arrefecem as minhas mãos, nuas. E o rio está mesmo aqui e avança furioso. Este meu sítio é só meu. Vim escrever as memórias que ontem criei. Vim sorrir com elas. Vim escrevê-las para mais tarde sorrir-lhes outra vez.
Ainda arde. Arde como o tempo. Umas vezes vagaroso, outras vezes depressa e impiedoso. As horas passam, os dias, os meses. E isto, o que escrevo agora, é intemporal. Vai ficar para sempre, para quem quiser ler ou para quem quiser rejeitar. É por isso que as memórias do ontem têm de ser escritas, têm de se tornar infinitas. São estas as palavras que me fazem estar com pés no chão, que me passeiam pelos mil e um trilhos da minha vida. Por caminhos de terra e pela calçada portuguesa. Eu sou as palavras que escrevo. Sou a terra molhada e o seu cheiro. Sou as estrelas. Sou os meus amigos, sou as suas gargalhadas. Sou o meu sítio e o rio. Sou o tempo. Sou as minhas cidades. Sou cada uma destas letras que formam palavras, que formam frases, que formam sonhos.
Ainda arde, o cigarro. E ardem, também e para sempre, as palavras.


" Ainda Ardem " - 14/10/10     Quatro anos!

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Longe


" ... Cause all my life I felt this way ... "

Ele era carente. Ele ansiava por atenção. Todos os dias esperava por um telefonema, todos os dias esperava que lhe acontecesse algo que chamasse os outros. À noite chorava e escrevia palavras cheias de sofrimento e chorava. Ele não queria ser assim, mas nunca conseguiu mudar. Caminhava sozinho. Percorria avenidas, praças e jardins. E mesmo se nesses sítios estivessem milhões de pessoas ele sentir-se-ia sempre sozinho. Ele não sabia o que queria.
Um dia apaixonou-se, mas não falava com ela. Olhava-a de soslaio. Nem lhe sorria. No dia seguinte aproximaram-se. Falaram. Trocaram palavras. Ela sempre lhe achou piada. No outro dia, depois desses dias, beijaram-se. Foram passear, foram ao cinema e passaram a noite juntos. Adormeceram em êxtase, acordaram com música e sorrisos. Ele estava feliz. Tinha a atenção de alguém. Durante aqueles dias, meses, ele foi feliz, mesmo continuando com as suas manias e com os seus momentos de angustia.
Um dia, depois dos dias de paixão, ela partiu. Ele afastou-a. Não porque não queria estar com ela, mas sim porque queria sempre mais, porque ele era egoísta. Ela foi e ele ficou, sozinho outra vez. À noite chorava e escrevia palavras cheias de sofrimento e chorava, junto à janela, na esperança que o mundo acabasse naquele preciso momento. Desejou-o tantas e tantas vezes.
E aconteceu. Daquela mesma janela o mundo fugiu-lhe, porque ele assim o quis.


" Longe " - 12/10/10 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Baloiço

A Joana cresceu de coração partido. A Joana cresceu e lutou de coração partido. Os seus pais faleceram quando era bem nova. Tinha os seus seis anos. O irmão da Joana, o Rui, sempre a protegeu. O Rui era mais velho, tinha 16 aquando de tão triste acontecimento. O Rui é mais forte que a sua irmã, mas mais frio e distante. A Joana e o Rui têm agora, respectivamente, 16 e 26 anos de idade. São irmãos, são amigos. São como unha e carne. Ela está mais forte e ele menos frio e menos distante. Ambos estudam e ambos trabalham. No aniversário dos pais vão à missa e rezam. Pedem, querem que os pais estejam bem, a olhar por eles com um sorriso, com uma palavra amiga e com conselhos sempre na ponta da língua.
Nem a Joana nem o Rui namoram. Estão vazios de alguém. Os seus corações estão quase curados, quase. A ferida está quase sarada. Ainda não conseguem partilhar os seus corações com mais ninguém. Mas sabem que está quase, quase.A Joana, quando chega a casa, vinda escola, vai logo para o jardim, vai sentar-se no baloiço, o mesmo baloiço que tantas vezes o seu pai empurrou. O mesmo baloiço que a levava a tocar as nuvens. É naquele jardim que ela, e o Rui, recordam. É nele que encontram esperança e força. É no jardim lá de casa que a Joana e o Rui vivem e é onde eles vão buscar a coragem que os faz sorrir.


" Baloiço " - 05/10/10

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Folhas


O chão está coberto folhas, umas secas e outras ainda verdes, arrancadas, com certeza, pela força do vento. O sol espreita por entre os ramos, altos, das árvores que me circundam. Hoje está um dia lindo
Aqui tudo é mais calmo. As pessoas e as suas vivências. Para mim é perfeito. Neste jardim encontro de tudo um pouco. Encontro homens e mulheres de todo o lado, até mesmo do outro lado do planeta. Estão todos cá pelo mesmo motivo que eu. Aqui, passeia-se de bicicleta sempre que se pode, sempre que o sol brilha ou a chuva caia. É calmo, sossegado. É urbano mas faz-me lembrar a minha casa, no meu Alentejo, rodeado, preenchido, de oliveiras e de um sol quente como as suas gentes. Tenho saudades. Ainda não me atacaram com força, mas tenho. Saudades, principalmente, dos pequenos pormenores, como do carteiro na sua azáfama pela cidade e do canto dos pássaros que tantas pessoas têm em suas casas. Tenho saudades de todas as coisas que fazem parte da minha planície, mas já tenho saudades deste sítio onde estou agora, já tenho saudades das pessoas que vou deixar aqui em Março. A minha estadia ainda mal começou mas sinto que este sítio, que estas pessoas, já fazem parte da minha vida, e que depois vai ser difícil deixar de estar com elas, de as ver todos os dias. Tenho a certeza de que este é um bom sentimento e quero partilha-lo. Sinto-me bem, distante do que me tornou o Homem que sou, mas feliz.
O vento sopra, agora, mais forte. Abana os ramos, altos, das árvores que me circundam. Folhas caem. E, para mim, cada uma representa uma pessoas diferente. Umas que conheci no meu Portugal e outras que já conheci aqui. E elas não caem das árvores para morrer, caem para colorir o chão que piso neste meu novo dia-a-dia. Caem para completar a minha vida e para se sentarem, comigo, neste banco de jardim.


" Folhas " - 15/09/10