quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ainda Ardem


Ainda arde, o cigarro. A noite está fria e o vento gélido. Ambos arrefecem as minhas mãos, nuas. E o rio está mesmo aqui e avança furioso. Este meu sítio é só meu. Vim escrever as memórias que ontem criei. Vim sorrir com elas. Vim escrevê-las para mais tarde sorrir-lhes outra vez.
Ainda arde. Arde como o tempo. Umas vezes vagaroso, outras vezes depressa e impiedoso. As horas passam, os dias, os meses. E isto, o que escrevo agora, é intemporal. Vai ficar para sempre, para quem quiser ler ou para quem quiser rejeitar. É por isso que as memórias do ontem têm de ser escritas, têm de se tornar infinitas. São estas as palavras que me fazem estar com pés no chão, que me passeiam pelos mil e um trilhos da minha vida. Por caminhos de terra e pela calçada portuguesa. Eu sou as palavras que escrevo. Sou a terra molhada e o seu cheiro. Sou as estrelas. Sou os meus amigos, sou as suas gargalhadas. Sou o meu sítio e o rio. Sou o tempo. Sou as minhas cidades. Sou cada uma destas letras que formam palavras, que formam frases, que formam sonhos.
Ainda arde, o cigarro. E ardem, também e para sempre, as palavras.


" Ainda Ardem " - 14/10/10     Quatro anos!

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Longe


" ... Cause all my life I felt this way ... "

Ele era carente. Ele ansiava por atenção. Todos os dias esperava por um telefonema, todos os dias esperava que lhe acontecesse algo que chamasse os outros. À noite chorava e escrevia palavras cheias de sofrimento e chorava. Ele não queria ser assim, mas nunca conseguiu mudar. Caminhava sozinho. Percorria avenidas, praças e jardins. E mesmo se nesses sítios estivessem milhões de pessoas ele sentir-se-ia sempre sozinho. Ele não sabia o que queria.
Um dia apaixonou-se, mas não falava com ela. Olhava-a de soslaio. Nem lhe sorria. No dia seguinte aproximaram-se. Falaram. Trocaram palavras. Ela sempre lhe achou piada. No outro dia, depois desses dias, beijaram-se. Foram passear, foram ao cinema e passaram a noite juntos. Adormeceram em êxtase, acordaram com música e sorrisos. Ele estava feliz. Tinha a atenção de alguém. Durante aqueles dias, meses, ele foi feliz, mesmo continuando com as suas manias e com os seus momentos de angustia.
Um dia, depois dos dias de paixão, ela partiu. Ele afastou-a. Não porque não queria estar com ela, mas sim porque queria sempre mais, porque ele era egoísta. Ela foi e ele ficou, sozinho outra vez. À noite chorava e escrevia palavras cheias de sofrimento e chorava, junto à janela, na esperança que o mundo acabasse naquele preciso momento. Desejou-o tantas e tantas vezes.
E aconteceu. Daquela mesma janela o mundo fugiu-lhe, porque ele assim o quis.


" Longe " - 12/10/10 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Baloiço

A Joana cresceu de coração partido. A Joana cresceu e lutou de coração partido. Os seus pais faleceram quando era bem nova. Tinha os seus seis anos. O irmão da Joana, o Rui, sempre a protegeu. O Rui era mais velho, tinha 16 aquando de tão triste acontecimento. O Rui é mais forte que a sua irmã, mas mais frio e distante. A Joana e o Rui têm agora, respectivamente, 16 e 26 anos de idade. São irmãos, são amigos. São como unha e carne. Ela está mais forte e ele menos frio e menos distante. Ambos estudam e ambos trabalham. No aniversário dos pais vão à missa e rezam. Pedem, querem que os pais estejam bem, a olhar por eles com um sorriso, com uma palavra amiga e com conselhos sempre na ponta da língua.
Nem a Joana nem o Rui namoram. Estão vazios de alguém. Os seus corações estão quase curados, quase. A ferida está quase sarada. Ainda não conseguem partilhar os seus corações com mais ninguém. Mas sabem que está quase, quase.A Joana, quando chega a casa, vinda escola, vai logo para o jardim, vai sentar-se no baloiço, o mesmo baloiço que tantas vezes o seu pai empurrou. O mesmo baloiço que a levava a tocar as nuvens. É naquele jardim que ela, e o Rui, recordam. É nele que encontram esperança e força. É no jardim lá de casa que a Joana e o Rui vivem e é onde eles vão buscar a coragem que os faz sorrir.


" Baloiço " - 05/10/10