quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Nunca é para sempre

Tentei. Juro que tentei. Mas nunca é para sempre. Não fui astuto quando tinha idade para sê-lo. E agora, a areia puxa-me. Mais fundo, mais fundo. Sobram-me os braço à superfície e só um me pega e lembra-me que já não és aquilo que um dia, ao sol, foste. Mas não te desanima. Dá-te luz e futuro. Dá-te presente e palavras que usas para te salvar, e gestos. Tantos gestos.

P.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Barco

Sorri. Estás a ser fotografado. Estás a ser atingido por centenas de olhares curiosos. Mas não te importes com isso. Olha para dentro, vê-te. Não fiques parado e atravessa o mar de gente que te rodeia, que parece que te prende. Mas o mar não te prende, só serve para o navegares. Não sejas parvo e navega. Lê o sol e depois as estrelas. Lê os parágrafos que elas escreveram para te indicar o caminho. Não sejas parvo. Aplaude as luzes que brilham lá em cima, como que flashes. Sorri. Estás a ser fotografado.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Da Janela

Já ninguém se debruça no parapeito das janelas e vislumbra o mundo. Já são poucos aqueles que, de manhã ou à tarde ou à noite, vêem o melhor dos programas que a vida tem para oferecer. Há coisas que não se podem perder ou sequer deixar de existir. Da janela vê-se a azáfama matinal, vê-se tudo o que nos rodeia e ao qual nem sempre damos importância. Tudo o que vemos da janela das nossas casas tem significado e faz parte daquilo que somos como pessoas e como humanos. Quem tem a sorte de ter uma janela virada para a luz resplandecente de Lisboa, tem a sorte de a ver de forma privilegiada e única. E cada uma das janelas com vista para Lisboa é única, porque vê coisas que outras não conseguem. Contam histórias que muitas não podem contar, ouvem coisas que outras não podem ouvir. Da minha janela vê-se o sol, vê-se a lua. Vê-se o mato de Monsanto. Vê-se o Marquês e o Saldanha. A única coisa que não vejo são pessoas a ver o que eu vejo. Se parassem por um minuto que fosse, debruçadas sobre o parapeito, e vissem aquilo que eu vejo iam saber de tudo o que acontece ali, bem perto delas, ou lá ao longe. Da janela vê-se o mundo. Da janela vejo o teu mundo e o meu e a tua cidade. Vejo os sítios onde me dás a mão e os lábios. Vejo os passeios que tantas e tantas vezes pisamos e que tantas e tantas vezes vamos pisar, sempre sem nos cansarmos. Eu, à noite, debruço-me sobre o parapeito da janela e vejo-te. E é como se estivesses comigo a ver o melhor dos programas que a vida nos tem para dar.

P.

domingo, 31 de março de 2013

Cantiga tocada e cantada com beijos

A cantiga foi tocada e cantada cem vezes sem parar e não me cansei de a ouvir. A cada vez que recomeçava sentia algo de novo na sua melodia. Era sempre como a primeira vez. Como o teu beijo.

P.

domingo, 24 de março de 2013

As Terras do Sol

Corri numa planície repleta de oliveiras. Não bati em nenhuma. Fiquei com arranhões nos braços por passar por entre as silvas. Sujei as calças porque caí na terra seca e pálida que os meus passos pisavam. Suei o corpo porque corri numa planície e estava um sol abrasador. Cheguei mais cedo ao meu destino porque corri depressa demais. Apareceste e deste-me água. Bebi-a a um só gole. Estava fresca. Já menos ofegante pedi-te um beijo na face. Tu deste. Disse que te amava. Tu disseste o mesmo. Levantei-me, beijei-te os lábios e corri. Corri pela planície. Olhei para trás e ainda via o teu sorriso. E sorri também. Caí na terra, seca e pálida. Arranhei-me nas silvas. Não bati em nenhuma oliveira. Suei o corpo porque corri numa planície e porque estava um sol abrasador. Cheguei ao meu destino e sentei-me. Olhei o horizonte e imaginei-te a caminhar e a sorrir. E, também eu, sorri.

P.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

São modos

Eu dantes escrevia numa folha de papel em branco e hoje escrevo onde as cores não cabem e onde as palavras se medem pelo seu valor como palavras, sejam elas boas, más, alegres ou tristes. Não sou quem era, mas não sou quem queria ser. Sou o produto final de uma busca, mesmo que essa busca tenha sido infrutífera. Mesmo que essa busca tenha sido a melhor das procuras.
É fácil querer e é fácil encontrar justificações, erradas, sempre erradas. É fácil encontrá-las e fácil perdê-las no meio da multidão e das janelas que se abrem e fecham diante de nós. Não sou quem era. Sou quem nunca quis ser. Sou aquilo, aquele, que escolhi sem pensar, sem medir consequências e sem pensar no meu abrigo, aquela coisa que tudo nos dá. Merda, quis ser mais. Quis ser outro e quis que os outros fossem outros, aqueles que nunca quis ser. Merda, merda. Fui eu que errei. Fui eu, por caminhos cheios de buracos, cheios de teias e círculos e círculos e círculos, que me trouxe aqui. Foi no meu peito que carreguei a minha mentira e a minha própria teia, tecida por uma aranha tão grande, tão grande. Merda. 
Vida, leva-me daqui. Leva-me com o vento. Aventa-me com um sopro, e pelo vento, para longe. 
Para longe não, gosto de estar aqui. Leva-me a passear, mas não me tires os meus, nem a minha paixão.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Traços

Corri o campo com a força de um jovem. Saltei as cercas e subi às árvores. No cimo de uma oliveira dei por ti. O sol batia-te na cara e os teus olhos brilhavam. Foi bom, foi confortável. Peguei na tua mão e trouxe-te parra terra. Contigo vi as flores silvestres e os pequenos riachos. Corremos as estradas de terra e vimo-las transformarem-se em macadame, no macadame da tua cidade: de prédios altos, de igrejas, de jardins e de água. A água do teu rio, do teu rio imponente. Quando a noite caiu, abracei-te e perdi-me em ti. E é fácil perder-me em ti porque é fácil encontrar-me depois, e encontrar-te a ti, outra vez no nosso abraço.

P.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Ele levava consigo a eterna saudade. Os refúgios escondidos e o outrora. Devolveu, então, ao vento o que restava dos dias e das horas e dos minutos, para conseguir construir, ele, os seus próprios dias e horas e minutos. Mas o mundo caía-lhe nos ombros, de vez em quando. 
Ele carregava-o para casa e metia-o num canto. Depois, cansado, deitava-se e desaparecia. Dava voltas e voltas, corria corridas de quilómetros e quilómetros. Levantava-se cansado, pois.


Cansado porque sabia que iria chegar a casa e trazer o mundo com ele.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Feito de Pedra

Era feito de pedra e era onde ele brincava e corria e jogava à bola. Era feito de pedra e era onde ele caía, se levantava e caía e feria os joelhos. Era, naquele largo, que ele vivia as tardes e as noites quentes, tórridas, de Verão. Lá viviam meninos despreocupados, sem intenção de futuro, mas com um presente feito de melodias que gargalhavam e dançavam ao sabor das brisas de tardes e noites alentejanas.
Enquanto eram observados pela vizinhança e pelas oliveiras que ao fundo preenchiam os montes, os miúdos alegravam as almas e cansavam os músculos. Não havia sítio como aquele, nem a relva do jardim era tão apelativa, onde os velhos, os avós, se sentavam à mesa e jogavam às cartas ou dominó. As pedras daquele largo eram pisadas como quem pisava aquela relva do jardim dos velhos.
O largo tinha as dimensões necessárias. Bom para futeboladas e para jogar ao berlinde, já que, havia um pequeno espaço de terra para fazer as três covas. As árvores que o ladeavam e os arbustos eram os locais predilectos para quem se divertia a jogar às escondidas.
Aquele largo era cheio de vida.
Sim, era. Cheio de vida. Hoje não passa de um simples local de passagem. Já não há baloiços, nem areia, nem miúdos a correr e a jogar à bola e ao berlinde. Hoje é um simples largo. É uma memória, ainda bem viva e presente. Uma memória que vive no passado mas que tantas e tantas vezes é rebuscada e buscada para o presente.
Aquele largo, onde ele brincava e corria e jogava à bola ainda lá está. Diferente, é verdade, mas contém as histórias e os passos de bebé. Aquele que serão sempre os primeiros e os últimos a morrer.


" Feito de Pedra " - 24/05/11

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Safira

Atravessada a imensidão do oceano, chegaram, finalmente, ao tão aguardado destino. A areia não era branca e a água não tinha aquele azul-marinho que tantas vezes viram em postais. Não havia palmeiras, nem cabanas junto à praia. Mas o que os surpreendeu não foram essas coisas. Foram as pessoas. Essas sim eram como as tinham descrito. Calorosas, prestáveis. Tudo o resto era um simples complemento.
Passearam-se na pequena vila, passearam-se na floresta que a envolvia. Nadaram, descansaram, dormiram. Acordaram de noite, à beira de uma fogueira, rodeados de pessoas, de sorrisos. Acordaram no mundo que tantas vezes sonharam viver. Ao sol, à chuva. Com canções. Com o dedilhar das pessoas que dedilhavam as guitarras.
Este era o imaginário deles.


" Safira " - 21/04/11