sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Feridas II

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Um novo dia nasceu. O sol tentava livrar-se das nuvens. Tentava brilhar. Fui até à janela e vi a Carolina sentada no baloiço, no jardim, a gesticular. Desci. « Carolina, que estás a fazer? ». « A falar com o pai.», respondeu. Juro que o meu coração deixou de bater durante breves segundos. Naquele instante senti a minha irmã cair num poço sem fundo. Naquele instante, olhei-a nos olhos e mais uma vez nada vi. Ela mal pestanejava. Estava hipnotizada num outro baloiço, vazio aos meus olhos, mas onde ela avistava o nosso pai. Para ela, ele estava ali sentado, sereno e pensativo. Era ali que tantas vezes brincámos. Foram ali passadas tantas tardes. Foram tantos os segredos confiados e tantas as histórias partilhadas.

O nosso pai era um homem simples. Não dava nas vistas mas era conhecido de todos. Tinha uma loja de electrodomésticos e ainda fazia uns biscates como serralheiro. O dinheiro custava a chegar ao fim do mês, principalmente depois do que aconteceu à nossa mãe, mas eu e a Carolina sempre ajudámos no que era preciso.
Sempre estivemos uns para os outros. Sempre cuidámos de nós, de todas as coisas, de todos os momentos.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Feridas

Está vento. Um pedaço de cinza cai sobre o teu ombro. Acabámos de lançar aos tempos o nosso pai. Morreu faz hoje três dias. Três longos dias. Dolorosos. Feitos de lágrimas e abraços. Ficámos sem ninguém. Só nós dois nesta enorme casa. Primeiro a mãe, agora o pai. Em ti vejo uma tristeza imensa. Uma tristeza daquelas que nos mata a cada segundo, a cada minuto que passa. Eu sei que  te sentes assim. Conheço-te. Sei que tudo isto te vai afogar. E também sei que não vou ter forças para te salvar.
Abraço-te. Dou-te um beijo na tua face rosa e carregada, e olho os teu olhos cor de mel. Nada vejo. Estás vazia. Quero tanto dar-te calor, o pouco que tenho. Mas nada consegues agarrar. Tenho medo por ti e por mim. Se abalares, se te perder, também, que vou eu fazer? Não sei. Não quero sequer pensar nisso. Tremo.
Estamos, agora, sentados na relva, com o mar como fundo e o céu estrelado como tecto.« Carolina, diz-me o que estás a sentir ». O silêncio continua. Um silêncio pesado, gritante, angustiante. Continuo, « Não consigo chorar. Sinto uma dor tão grande que me prende tudo, as pernas, os braços, as lágrimas. O coração ».

A minha irmã sempre fora fechada, e o seu mundo um castelo de cartas, frágil. Criei-a, praticamente, sozinho, desde a morte da nossa mãe. Ficámos os dois devastados, mas ela entrou numa depressão que durou dois anos. Nada parecia fazê-la acordar daquele estado de letargia. Só quando conheceu o Gustavo, o seu namorado. Mas hoje ele não está com ela, para a abraçar. Hoje sou eu que tomo conta dela, outra vez, mas temo não conseguir. É muita coisa no peito. Muita coisa presa.


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terça-feira, 9 de novembro de 2010

Andava à procura de epicidade...




" ...  como um pano amarrotado que se esquece no estendal ... "

Andava à procura de epicidade nas ruas da minha vida. Procurei-a em cada beco, em cada avenida, em cada bairro. Vi as minhas gentes. Vi crianças a brincar, vi o mundo e o tempo. Andava à procura de epicidade. Procurei-a entre oliveiras e sobreiros. Entre montes e cabeços. Vi gerações velhas, vi as suas faces feitas de histórias. Vi homens e mulheres a lavrar a terra. Vi o gado e os pastores e os cães. Vi, também, carroças puxadas por burros, conduzidas por homens do campo com a roupa suja de pó e a barba por fazer. Andava lá, à procura de epicidade. Tirei fotos. Fiz desenhos no chão seco, enquanto que no céu voavam carracenos e cegonhas.
Eu andava à procura de epicidade. E encontrei-a, em cada sorriso que vi. Em cada pôr-do-dol que presenciei, em cada pássaro que vi rasgar o azul limpo do céu. Encontrei-a nos rios e nos lagos e no oceano. Encontrei-a no olhar.
Andava à procura de epicidade.


" Andava à procura de epicidade... " - 09/11/10

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Noite Cerrada



Noite cerrada e sem luz. Caminho. Não sei onde vou. Comecei a viagem quando ainda era dia. Hoje corria o mundo em passos de bebé. Sozinho, só eu e o meu silêncio e uma música a tocar baixinho. Hoje apetece-me andar até desmaiar de cansaço. Apetece-me dar corda aos sapatos e correr o mundo. A observar. A lançar o meu olhar às pessoas que passam, aos meninos que brincam, às árvores, ao céu e ao sol e às nuvens. Até mesmo à chuva. Isso não importa. O tempo. O tempo não importa. Só o mundo.

" Noite Cerrada " - 04/11/10